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sábado, 1 de dezembro de 2012

A VIDA PRECISA DE FIXAR-SE E DE MOVER-SE

Foto de Luigi Pirandello retirada de http://traduzirfantasmas.wordpress.com
















(…)
Parece-vos, minhas senhoras e meus senhores, que ainda pode haver vida no que já não mexe? Naquilo que descansa na sua perfeita quietude?
A vida deve obedecer a duas necessidades que, porque são opostas, não lhe permitem nem fixar-se definitivamente nem continuar sempre a mover-se. Se a vida sempre se movesse, nunca mais se fixaria; e se, ao contrário, se fixasse, nunca mais se moveria. E a vida precisa de fixar-se e de mover-se.
O poeta ilude-se a si próprio quando julga ter encontrado a libertação e ter conseguido a quietude fixando para sempre numa forma imutável a sua obra de arte. Acabou simplesmente de viver esta sua obra. A libertação e a quietude não se atingem sem que se tenha deixado de viver.
E todos os que as encontraram e conseguiram atingir estão nesta miserável ilusão de se crerem ainda vivos, quando na verdade estão de tal modo mortos que já não sentem o fedor do seu cadáver.
Se uma obra de arte sobrevive é só porque ainda a podemos arrancar à fixidez da sua forma, porque podemos acolher essa sua forma dentro de nós num movimento vital; e a vida somos nós que lha damos então; diferente de tempo para tempo, e variando de um para outro de nós; muitas vidas e não uma só; como se pode inferir das contínuas discussões que se sucedem e que nascem do facto de não se querer acreditar neste ponto: que não somos nós que lhe damos esta vida; e que não é de facto possível que a vida que eu lhe dou seja igual à que lhe dá outro. Peço que me desculpem, minhas senhoras e meus senhores, por esta longa excursão que me vi obrigado a fazer para chegar a este ponto, àquilo a que queria chegar.
Podem-me perguntar:
«Mas quem foi que lhe disse que a arte devia ser vida? É verdade que a vida tem de obedecer às duas necessidades opostas que o senhor diz, mas por isso mesmo não é arte; tal como a arte não é vida porque consegue precisamente libertar-se dessas necessidades opostas e consiste na eterna imutabilidade da sua forma. E é por isso mesmo que a arte é o reino da criação conseguida, enquanto que a vida está como deve estar, numa infinitamente variada e constante formação. Cada um de nós procura criar-se a si próprio e criar a sua própria vida com as mesmas faculdades do espírito com que o poeta faz a sua obra de arte. E são de facto aqueles que mais são dotados destas faculdades e que melhor as sabem utilizar que conseguem atingir um estádio mais elevado e dar-lhe uma consistência mais durável. Mas não será nunca uma verdadeira criação, antes de tudo o mais porque se destina a deteriorar-se e a acabar connosco no tempo; depois porque, ao tender para um fim, nunca poderá vir a ser livre; e finalmente porque, ao estar exposta a todos os acasos imprevistos e imprevisíveis, a todos os obstáculos que os outros lhe opõem, corre continuamente o risco de ser contrariada, desviada, deformada. A arte vinga de certa maneira a vida porque a sua criação é autêntica enquanto liberta do tempo, dos acasos e dos obstáculos, e não tem outro fim a não ser ela própria.»
Pois, minhas senhoras e meus senhores, eu respondo que sim, que é verdade.
E até vos digo que cheguei a pensar muitas vezes com sentimentos angustiosos, senão de pavor, na eternidade de uma obra de arte como numa inacessível e divina solidão da qual até o poeta é excluído no momento em que acaba de criar; ele, um mortal, excluído desta imortalidade.
Tremenda é a estátua na imobilidade da sua atitude.
Tremenda é esta eterna solidão das formas imutáveis, longe do tempo.
Qualquer escultor – eu não o sou mas posso imaginar – depois de ter criado uma estátua, se verdadeiramente acredita ter-lhe dado vida para sempre, deve desejar que ela, como coisa viva, se possa soltar da sua fixidez e se possa mover e falar.
Deixaria de ser estátua e tornar-se-ia em pessoa viva. Mas só com esta condição, minhas senhoras e meus senhores, se pode traduzir em vida e voltar a mover-se aquilo que a arte fixou na imobilidade de uma forma; só com a condição de esta forma receber de nós o movimento, uma vida variada, diferente e momentânea: aquela que cada um de nós for capaz de lhe dar.
Hoje deixam-se voluntariamente as obras de arte na sua divina solidão intemporal. Os espectadores, depois de um dia de pesadas preocupações e de actividade intensa, angústias e trabalhos de todo o género querem, à noite, divertir-se no teatro. (…)

In «Esta noite improvisa-se» (do original Questa sera si recita a soggetto), de Luigi Pirandello, Editorial Estampa, Lisboa, Janeiro de 1998 (2.ª edição).
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Trechos da personagem Chanteause / A Cantora, vivida pela actriz Gabriela Smith, na peça "Esta noite se improvisa" (Rio de Janeiro, com direcção David Herman - autor Luigi Pirandello):

http://www.youtube.com/watch?v=LBbwdwl5SrQ

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