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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

«Os melhores romances têm passagens aborrecidas», diz Bertrand Russell

Retrato de Bertrand Russell, por Norman Rockwell, para a revista Ramparts
Todos os grandes livros contêm passagens aborrecidas e em todas as grandes vidas houve períodos pouco interessantes. Imaginai um moderno editor americano a quem lhe levassem o Velho Testamento como um manuscrito novo para ser publicado pela primeira vez. Não é difícil adivinhar quais seriam os seus comentários a respeito, por exemplo, das genealogias: «Meu caro senhor, diria, a este capítulo falta animação; não pode esperar que os leitores se interessem por uma simples lista de nomes próprios de pessoas sobre as quais lhes diz tão pouco. Reconheço que começou a sua história num belo estilo e no princípio eu estava muito favoravelmente impressionado, mas verifiquei que tem um desejo excessivo de dizer tudo. Escolha as passagens mais claras e importantes, elimine as supérfluas e volte a trazer-me o manuscrito quando tiver reduzido a uma extensão razoável.» Assim falaria um editor moderno que conhecesse o medo que os leitores têm de se aborrecer. Diria o mesmo a respeito das obras clássicas de Confúcio, do Alcorão, do Capital de Marx e de todos os outros livros consagrados que provaram ser best-sellers. E isto não se aplica somente a esses livros. Todos os melhores romances têm passagens aborrecidas. Um romance brilhante da primeira até à última página é quase certo que não será um bom livro. A vida dos grandes homens não foi também emocionante, a não ser em raros momentos. Sócrates gostava de assistir de vez em quando a um banquete e decerto sentiu grande prazer na conversação enquanto a cicuta produzia os seus efeitos, mas a maior parte da sua vida passou-a calmamente com Xantipo, dando à tarde o seu passeio higiénico e acaso reunindo-se com alguns amigos no caminho. Diz-se que Kant, em toda a sua vida, nunca se afastou mais de dez milhas de Conisberga. Darwin, depois de ter dado a volta ao mundo, passou o resto da vida dentro de casa. Marx, depois de ter fomentado algumas revoluções, decidiu consumir o resto dos seus dias no British Museum. Por conseguinte, pode verificar-se que uma vida calma foi a característica da vida dos grandes homens e que os seus prazeres não foram do género dos considerados apaixonantes aos olhos do mundo. Nenhuma grande obra é possível sem trabalho persistente, tão absorvente e tão penoso, que poucas energias deixa para os divertimentos mais esgotantes, a não ser os que servem, durante as férias, para recuperar a energia física e dos quais o alpinismo é o melhor exemplo.

In «A conquista da felicidade», de Bertrand Russell (tradução de José António Machado), Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Janeiro de 2001 (9.ª edição). 

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