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quinta-feira, 7 de março de 2013

Excerto de «O Senhor Ventura», de Miguel Torga


A volta do meu herói a este velho continente faz-me sempre estremecer o coração.
A história do filho pródigo nunca me deixou sereno. Quando em pequeno lia essa trágica novela do primeiro revoltado contra a palha puída da casota onde a vida nos mete, e onde medram, gordas, as pulgas domésticas, comovia-me sempre. Já nesse tempo eu era capaz de ver o que há de legítimo em cada partida e de fatal em cada regresso. Com os anos, a rebeldia do primeiro capítulo e a alegria do último perderam muito da sua magia. Até que era bom não amar e não ser amado eu aprendi! E aquele jovem insubmisso a guardar porcos em casa alheia passou a ser a meus olhos um símbolo invejável e promissor da fecunda solidão. Depois, fui mudando de ideias. Comecei a achar graça aos próprios parasitas do ninho, e, sem de nenhum modo pensar que é um alto destino ser mordido por eles, aceitei sem relutância que o rapaz da Bíblia tornasse, arrependido, à casa paterna.
Que é o caso presente do Senhor Ventura. O alentejano vem direito a Penedono. Traz às costas algumas mortes, um lar falhado, a certeza de um filho, e os olhos cheios de estranhas e sobrepostas imagens. Não foi, visivelmente, a castiça saudade nossa que o empurrou de oriente para ocidente, nem parece ter consciência de que há uma solidariedade que nada pode destruir entre a pedra rolada e a penedia de onde saiu. Mas vem. Milagrosamente, a mão do infortúnio lavou-o das nódoas mais essenciais. Entra no lar, não digo repeso de ter partido (nem era de desejar que assim acontecesse), mas instintivamente disposto a pagar o que deve à condição nativa. E isto toca-me cá por dentro.
Como logo no princípio expliquei, toda a história do meu herói é-me conhecida já, e eu conto-a a mim próprio nas horas de melancolia. Em cada paragem não faço mais do que tentar uma pequena meditação sobre um destino que é mais colectivo do que individual. Agora, desembarcado nesta urbana Europa, e a caminho de casa, que é o Senhor Ventura senão o efeito irremediável dum tropismo que nos anda no sangue e nos chama em qualquer parte do mundo a este pobre redil lírico e desconfortável, ao mesmo tempo tão absurdo e tão humano? Ah, eu acredito que esta fidelidade inconsciente ao granito, ao luar e à urgueira, encerra uma grande lição de vitalidade e de singularidade. Vejo nela uma prova do nosso destino nacional e universal. Mandado pelo governo chinês, ou pela sorte, ou até por um acaso onde não haja nem a hipótese duma razão, o alentejano, que foi do mundo inteiro, é outra vez daqui. A misteriosa e peregrina verdade é esta.

In «O Senhor Ventura» (com um prefácio do autor), de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1985 (2.ª edição refundida).

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