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segunda-feira, 18 de março de 2013

Fragmento da quarta carta atribuída a Mariana Alcoforado

Gravura de Eisen aberta a buril por Massard representando a infeliz freira 
em traje de dama e em ambiente do século XVIII.

















Há já muito tempo que um oficial espera esta carta. Tencionava escrevê-la de forma a não te aborrecer, mas é tão incoerente que será melhor acabá-la. Ai, não está em mim poder fazê-lo! Quando te escrevo é como se falasse contigo e estivesses, de algum modo, mais perto de mim. A próxima não será tão longa nem tão importante; podes abri-la e lê-la, confiado na minha promessa. Na verdade não devo falar-te de uma paixão que te desagrada, e não voltarei a falar nela.
Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixão parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.
O oficial que há-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir. Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraçada neste país. Adeus. Custa-me mais acabar esta carta do que te custou a ti deixar-me, talvez para sempre. Adeus. Não me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes mais que à minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah, como eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me escreves; não consigo deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e o oficial partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; não procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país. Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me reduziu o meu destino. Adeus.

In «Cartas portuguesas», atribuídas a Mariana Alcoforado (prefácio e tradução de Eugénio de Andrade; com pinturas de Ilda David), edição bilingue (o texto francês reproduzido neste livro segue o da edição original, publicado em Paris por Claude Barbin, em 1669), colecção Documenta Poética (n.º 18), Assírio & Alvim, Lisboa, Abril de 1998 (2.ª edição).

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