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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Excerto de «Antes do amanhecer», de William Somerset Maugham

Foto retirada https://www.facebook.com/wsomersetmaugham
Mrs. Henderson pôs-se a trabalhar sem perda de tempo, porque era urgente aprontar a casa, no menor prazo possível, para receber as crianças de que devia tomar conta. Todos esperavam que Londres fosse intensamente bombardeada, e os hospitais tinham instruções no sentido de se prepararem para acomodar vários milhares de feridos. Os doentes em condições de viajar deviam ser enviados para o campo, e os que pudessem ser dispensados sem perigo voltariam para suas casas. Houve um alarme antiaéreo no primeiro dia de guerra, e uma multidão de gente, uns por brincadeira, outros por medo, a maioria porque achava que se esperava deles aquilo mesmo, correram aos abrigos ainda inadequados. As autoridades insistiam na necessidade de se evacuarem as crianças, e os comboios, repletos, partiam da cidade. Era difícil, em tão curto prazo, encontrar acomodações convenientes para aquele fluxo diário.
Mrs. Henderson retirou a mobília da sala de baile e colocou camas pneumáticas, mandadas vir à pressa de Londres, em duas fileiras ao longo das paredes; esvaziou a grande sala de visitas e transformou-a em sala de brincar; e na ampla sala de jantar, só utilizada nas grandes festas, instalou o refeitório. Assim, ficava para uso da família o hall, decorado por William Kent – um dos locais mais notáveis da casa – além de uma sala de visitas e uma de jantar menores, e a biblioteca, com trabalhos de Grinling Gibbons. A conselho de Roger, ela decidira começar com trinta crianças, que vieram em dois grupos, um de doze e outro de dezoito. Procediam de Stepney, e tinham de quatro a doze anos; algumas, eram educadinhas, filhas de trabalhadores respeitáveis, mas outras deixavam transparecer lamentavelmente a aviltante pobreza dos pais. Vinham esfarrapadas e piolhentas. Tinham de ser lavadas, esfregadas e vestidas. As mais novas eram bastante fáceis de tratar mas algumas das mais velhas, especialmente os meninos, eram duras de dominar. Tinham hábitos anti-higiénicos, diziam palavrões e revelavam instintos de destruição. Duas ou três, a princípio, pareceram absolutamente ingovernáveis. Quebravam tudo o que pezinhos travessos pisavam maldosamente os canteiros, de modo que nem uma flor ficou de pé. Algumas nunca se haviam sentado, antes à mesa durante as refeições: comiam sentadas no chão, e quando as obrigavam a ir para a mesa, numa raiva desesperada, punham-se a atirar ao chão tudo que encontravam ao seu alcance. Mas talvez as mais difíceis de tratar fossem as que tinham saudades da família. Sentiam-se assustadas e sozinhas na grande casa perdida no campo, e cheias de nostalgia das ruas barulhentas e imundas dos bairros pobres de Londres. Havia também as mães, que vinham durante o dia visitar os filhos. Muitas ficavam contentes de sabê-los a salvo, e embora sentissem a falta deles não podiam deixar de ver que lhes fazia bem viverem aquela vida saudável do campo. Sentiam instintivamente que podiam confiá-los à bondosa senhora que falava com tanta amabilidade. Mas outras eram mais difíceis. Achavam ruim a comida simples e sadia que Mrs. Henderson dava às crianças, e queixavam-se de que elas estavam a passar fome. Outro motivo de reclamações era que ela fornecesse leite fresco em vez de condensado. «Mesquinha!» diziam. Estavam convencidas de que Mrs. Henderson recebia dinheiro do governo para sustentar as crianças, e não procuravam esconder a crença de que ela estava a fazer um bom negócio. Protestavam contra as roupas novas que ela lhes comprara; achavam aquilo um acinte à própria capacidade de vestirem os filhos decentemente; e como todos estavam vestidos da mesma maneira, qualquer um podia pensar que «eles eram uns enjeitados». Também não concordavam com os «banhos a toda a hora» que Mrs. Henderson insistia em dar às crianças. «O que vai acontecer é que eles morrem de frio, os pobrezinhos», protestavam. Muitas chegaram a insistir para levar os filhos. Esses forma substituídos por outros – e antes deles chegarem ninguém poderia dizer se seriam bonzinhos e bem comportados, ou pequeninos bandidos dados a desordens.
Em poucas semanas, porém, combinando firmeza e brandura, Mrs. Henderson conseguiu criar autoridade mesmo sobre os mais turbulentos. Com o seu coração bondoso, ela alegrava-se ao ver que a boa comida e o ar puro os fazia engordar e ficar corados. As mães mais azedas eram obrigadas a reconhecer que os filhos davam a impressão de ir muito bem, e admitiam, comicamente vexadas, que a «velha afinal de contas não era das piores». Foi um triunfo para Mrs. Henderson quando uma mulher ríspida, de traços duros, mãe de seis filhos, lhe disse:
– A senhora é mesmo uma dama, não tem que ver. E isto digo-o eu para quem quiser ouvir.

In «Antes do amanhecer», romance de William Somerset Maugham (tradução de Moacir Werneck de Castro), colecção «Autores de Sempre», Livros do Brasil, Lisboa, [1990].

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