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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Capítulo do romance «Lolita», de Vladimir Nabokov

Imagem retirada de http://oanaogigante.blogspot.pt/
Quando olhei em meu redor pela última vez, os olmos e os choupos viravam as suas costas encrespadas a uma súbita rajada de vento, e uma nuvem negra, de trovoada, acastelava-se sobre a torre da igreja branca de Ramsdale. A caminho de aventuras desconhecidas, abandonava a lívida casa onde alugara um quarto havia apenas dez semanas. As persianas – económicas e práticas de bambu – já estavam descidas. A sua rica contextura emprestava uma aura de drama moderno aos alpendres e à casa. Depois daquilo, a mansão celestial devia parecer muito nua. Caiu-me nos nós dos dedos um pingo de chuva. Reentrei em casa, para ir buscar qualquer coisa, enquanto John punha as minhas malas no carro, e então aconteceu algo engraçado. Não sei se, nestas trágicas notas, salientei suficientemente o peculiar efeito de «irradiação» que o agradável aspecto do autor – pseudocéltico, atraentemente simiesco, juvenilmente másculo – exercia nas mulheres de todas as idades e condições. Claro que tais declarações, feitas na primeira pessoa, podem parecer ridículas. Mas de vez em quando tenho de recordar ao leitor a minha aparência, do mesmo modo que um romancista profissional, que atribuiu a uma personagem certo maneirismo ou um cão, tem de continuar a apresentar esse maneirismo ou esse cão sempre que a referida personagem aparece, no decorrer do livro. No presente caso, talvez isso seja ainda mais importante. O meu aspecto melancolicamente atraente deve permanecer na mente do leitor, para que a minha história seja convenientemente compreendida. A púbere Lo sucumbiu ao encanto de Humbert como sucumbia à música sincopada; a adulta Lotte amou-me com uma paixão madura, possessiva, que deploro e respeito agora mais do que sou capaz de exprimir; Jean Farlow, que tinha trinta e um anos e era absolutamente neurótica, parecia sentir, também, forte inclinação por mim. Era bonita, de um tipo de beleza que lembrava escultura índia, e tinha uma tez escura, de terra-de-sena queimada. Os seus lábios eram dois grandes e escarlates pólipos, e, quando soltava a sua gargalhada especial, que parecia um ladrido, mostrava grandes dentes baços e gengivas descoradas. 
Era muito alta, usava calças e sandálias ou saias rodadas e sapatilhas de bailarina, bebia qualquer bebida forte em qualquer quantidade, tivera dois abortos, escrevia histórias acerca de animais, pintava – como o leitor sabe – paisagens lacustres, já andava a chocar o cancro que a mataria aos trinta e três anos e era absolutamente desprovida de atractivos, aos meus olhos. Imaginem, por isso, o meu susto quando, poucos segundos antes de eu partir (encontrávamo-nos os dois no corredor), Jean, com os dedos eternamente trémulos, me segurou pelas têmporas e, de lágrimas nos luminosos olhos azuis, tentou, sem o conseguir, colar-se aos meus lábios.
– Cuide de si – recomendou-me – e beije a sua filha por mim.
Ecoou pela casa um trovão, e ela acrescentou:
– Talvez um dia, algures, numa ocasião menos angustiosa, nos voltemos a ver. – (Jean, o que quer que seja e onde quer que esteja, num negativo espaço-tempo ou num positivo tempo-alma, perdoe-me tudo isto, incluindo o parêntese.)
Passados instantes, apertava a mão a ambos, na rua, na rua íngreme, com tudo a rodopiar e a voar ante a aproximação do dilúvio branco, e uma furgoneta, com um colchão vindo de Filadélfia, descia confiadamente a calçada, a caminho de uma casa vazia, e a poeira girava e dançava sobre a laje precisa em que Charlotte, quando tinham levantado a manta escocesa, se me revelara, encolhida, de olhos intactos e pestanas pretas ainda húmidas e coladas umas às outras como as tuas, Lolita.

In «Lolita» (romance), de Vladimir Nabokov (traduzido por Fernanda Pinto Rodrigues e revisto por José António Almeida), Colecção “Biblioteca Visão” (n.º 23), ACJ – Abril/Controljornal/Edipresse, Linda-a-Velha, Julho de 2000 (edição conjunta da revista Visão).

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