António Victorino D'Almeida - Imagem retirada de http://www.gazetadosartistas.pt
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Todos se espantavam com aquele animado diálogo, sabendo-se
que Leonardo raras vezes conversava com os outros, sempre fechado no seu
quarto, às voltas com as suas manias. Para obter um tal êxito de comunicação, o
Professor tinha de ser, de facto, um homem extraordinário, um mestre! Um
iluminado, mesmo!
E Leonardo continuava a expor ideias:
– As pessoas só não passam sem as hortaliças… E talvez por
essa razão se diz cá em casa, constantemente, que o Fialho é o homem mais
importante da terra…
O Professor compreendia o alcance do sarcasmo; retribuía com
um olhar amarotado, já muito cúmplice: enfim, cada pessoa tinha um lugar na
vida, consoante as apetências naturais, as características, a chamada
idiossincrasia; havia quem se considerasse feliz a devorar um longo romance de
Tolstói, a digerir o pensamento de um Emmanuel Kant, a sorver o seu
racionalismo, ou ainda a aspirar o perfume de um poema de Verlaine. Outros
havia que sentiam igual prazer a aplaudir uma jogada bem urdida por qualquer
negro possante, contratado a peso de ouro para fazer delirar multidões. Outros
ainda, como o seu primo Fialho, perdiam positivamente a cabeça com uma bela
dobrada tripeira, um bom cozido à portuguesa comido à sombra de uma latada,
regado com o vinho da região: excelente!... E, no fundo, se os livros de
autores geniais, os pontapés do negro hercúleo e os encantos da sonolência
pós-alimentar produziam idêntico efeito, respectivamente, no primeiro, segundo
e terceiro tipo de pessoas citadas, não havia que buscar nenhum erro de base
nessa realidade. A questão residia em cada um ter acesso ao lugar certo para
estar na vida. E, por aquilo que pudera observar, o lugar do Sr. Leonardo seria
mais perto dos livros do que das hortas, mais perto dos pensamentos do que das
couves. Como tão bem definiria: nascia-se poeta, nascia-se filósofo…
Leonardo escutava-o, atento, concentrado na assimilação de
nomes e palavras que jamais escutara. E perguntava:
– Mas serão mesmo necessários, os filósofos?...
Estava aberto o dique torrencial para a consagração do
Professor. Não uma só resposta à pergunta, mas respostas catadúpicas saíam-lhe
pela boca fora, numa linguagem fluida, articulada, refulgente. Mas claro que os
filósofos eram necessários! A filosofia estava na base de tudo: era a mãe de
todas as ciências, e também das artes do espírito. Ela, sim, a verdadeira
alavanca do progresso pois, sem filosofia, o mundo estaria condenado ao
retrocesso…
E quase enrouquecia ao dizer “retrocesso”, tal a tonalidade
cava que escolhia para pronunciar a palavra condenatória.
In «Os devoradores de livros» (ficção),
de António Victorino D’Almeida, Oficina do Livro (Leya), Alfragide, Junho de
2010 (1.ª edição).
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