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sábado, 17 de agosto de 2013

[Havia meses que os barcos não se faziam ao mar], excerto de «O céu é dos pássaros – Drama da emigração para França», de Luís Lourenço

Imagem retirada de http://www.cafeportugal.net
Na Vieira, como em toda a costa portuguesa, o Outono traz na bagagem, ao chegar, fome e penúria, às gentes ribeirinhas.
Com ele se instala a angústia no peito dos bravos pescadores, esses seres audaciosos que, com o decorrer dos anos, conquistaram uma condição anfíbia.
Enquanto o mar é brando, rosários de gaivotas ondulam sobre as águas, com terra à vista, entre a praia e o horizonte, entre o céu e o mar, buscando sustento ou preparando-se para demandar o norte.
Mas quando o vento agita as águas, as aves alvas e planadoras aproximam-se mais e mais da costa, onde fazem vida, se a chuva tomba do céu ou a tempestade se instala no mar.
Nos primeiros cem a duzentos metros de água as ondas enrolavam-se na própria espuma, deixando ali as mensagens, trazidas de longe, talvez do outro lado dos oceanos.
Num destes dias de tempestade, o Melro levantou-se cedo e desceu à praia.
O sol não rasgara ainda a neblina, daí que a procela fosse mais apregoada pelo rugir do mar que pelo encastelar das vagas.
Fazia rio e, mesmo embrulhado no velho capote alentejano, já em desuso e velha relíquia do avô materno, a frieza arranjava manhas para descer entre as golas e o pescoço do rapaz e, daí, pelos interstícios da camisola e camisa rota.
Havia meses que os barcos não se faziam ao mar e, na sua loja, mesmo fiando de bom grado, o Palardo mostrava um ar contristado sempre que o Melro lhe mandava assentar mais um copo de aguardente que lhe aquecesse o corpo, ou de vinho que lhe redobrasse o ânimo.
Lá fora, bem rente ao paredão, permaneciam, como exemplares de natureza morta, os barcos e os remos, já que às redes fora dado, em devido tempo, restauro e abrigo.
O frustrado pescador mal levantava o olhar do “Senhora dos Navegantes” que, na areia, mantinha a proa apontada ao mar, desde que ele e a restante gente da companha o deixara, ali.
Mas o seu pensamento não estava tanto na faina da pesca da sardinha, da tainha ou do cação, como na outra banda do oceano, que alguns colegas seus, esquecidas as tradições mas também as angústias da pesca, um dia haviam demandado.
Muitos desses amigos apareciam por ali pelas festas da Senhora da Boa Estrela, jactando importância, exibindo cruzeiros, relatando façanhas, mostrando os seus auríferos e rutilantes dentes.
Ah, o Brasil, esse mundo maravilhoso!... Quem lhe dera a ele, Melro, poder deitar-se sobre aquelas ondas pressurosas e arribar às terras de cujo maná sobreviviam e viviam tantos que, em dias de penúria, deixaram a Vieira, o Pedrógão e tantas praias de escravidão.
Ah, se ele, imitando as gaivotas, pudesse cruzar o Oceano parando por aqui e por ali, sobre um molho de algas, o casco dum navio ou qualquer tábua ou pipo abandonados à tona da água. Mas… o céu é dos pássaros.
Mesmo assim, não deixava de cogitar. Porque havia ele de continuar a viver subjugado à fome e atormentado pelo frio, em barracas esburacadas pelo tempo e pela maresia?
Com o rolar da manhã, a neblina foi-se afastando, deixando que a espuma prateasse a areia.
Estacas longas e desoladas, empinadas na praia, aguardavam as redes que há três meses, ao partirem, as tinham deixado nuas e fúteis.
Como carneiros em rebanho, as gaivotas acotovelavam-se na areia húmida e alisada pelas vagas.
O mar desenhava trilhos de neve, por vezes suja, quando as águas tresloucadas se estatelavam na areia.
De longe em longe, as ondas serenavam, trazendo à memória do frustrado jovem o tempo saudoso do verão e da azáfama.
Triste vida a dum pescador de arrasto a quem estranha magia prende a uma permanente escravidão! Mas… conseguiria o Melro sobreviver tão longe deste ruído constante, ora cavo ora agudo, ara forte ora brando, que nem um só dia, um só momento, mesmo, deixara de escutar desde o seu nascimento? E que mais saberia ele fazer que lançar redes e colher redes; empurrar barcos e puxar barcos; carregar cestos e despejar cestos; avistar areia e palmilhar areia? Ainda se soubesse juntar duas letras!...

In «O céu é dos pássaros – Drama da emigração para França», romance de Luís Lourenço, edição de autor, Leiria, 2005.

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