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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Joaquim Namorado e a poesia neo-realista, na visão de Eduardo Lourenço

Joaquim Namorado 
(Foto encontrada em voarforadaasa.blogspot.com)
É com o poema Judas, embora nitidamente inferior, o segundo momento significativo do itinerário adolescente de Joaquim Namorado. Sob a roupagem torguiana, antevê-se a passagem da revolta subjectiva, cujos termos e mitologia permaneceram invariáveis entre nós desde os fins do século XIX e seu idealismo anarquista, para uma revolta de contornos mais concretos na qual ela se despirá dos últimos resíduos dessa mitologia e passará de forma de consciência acusada a consciência acusadora. O sentimento de injustiça e em particular de uma injustiça social que se cobre com a respeitável máscara da referência religiosa, embora sem expressão poética digna de registo, apresenta-se já com Joaquim Namorado. Em nenhum outro poeta neo-realista – salvo Álvaro Feijó – se entrevê com tanta nitidez o processo de contestação de um mundo e uma sociedade como religado à falência objectiva desse mundo, em particular a sua falência religiosa. Para quem suponha que o «neo-realismo» é simples eco de uma ideologia alheia caída no céu português mercê de circunstâncias fortuitas, esta juvenil Invenção do Poeta (leia-se, invenção do poeta social futuro...) é inexplicável. A sua forma, demasiado dependente da dos grandes poetas contemporâneos, sem poder comparar-se-lhe, não contribui par emprestar a um tal combate espiritual, moral e ideológico o relevo que se poderia esperar. Mas isso não impede que o tomemos a sério e vejamos nele a representativa «transmutação» de toda uma geração do círculo do «presencismo» para outra coisa ainda indefinida que no último poema de Invenção do Poeta se evoca como

a claridade de um dia maior.

É já com a consciência perfeita de se situar nesta «claridade de um dia maior» que o poeta publica Aviso à Navegação (1941) na colecção «Novo Cancioneiro» de que constituirá uma das obras mais típicas. País de navegadores por antonomásia pareceria que o tema da navegação enquanto símbolo da nossa experiência histórica e metafísica ou vital nos fosse habitual. Tal não é o caso, o que prova sem dúvida que a mitologia navegadora é, sobretudo, referência ideológica. Na poesia moderna, a navegação como aventura da alma e do espírito (mais do que do corpo) é, na essência, obra de Pessoa-Álvaro de Campos – cuja presença em Aviso à Navegação é fundamental. Sem as implicações metafísicas ou ocultistas de Pessoa o mesmo tema havia encontrado na própria Presença, na poesia de Branquinho da Fonseca ou em poetas afins um testamento admirável, a tal ponto que o tópico marítimo e viajante se tornará um dos mais vivos da poesia portuguesa posterior.

In «Sentido e forma da poesia neo-realista», ensaio de Eduardo Lourenço, Gradiva, Lisboa, Outubro de 2007 (1.ª edição).

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