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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

[Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo], registo diarístico de Miguel Torga

Imagem encontrada em http://www.guiadacidade.pt/
Coimbra, 11 de Março de 1951 – Resposta a um inquérito do Journal des Poètes:
Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo. Mas com a profunda e radical reforma dos seus servidores. Entendendo que ela é a mais completa pergunta que se pode fazer à humanidade, e a mais sugestiva resposta que essa mesma humanidade pode dar, nenhum sofisma deve existir nos termos. Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade. A expressão desse diálogo é equívoca e serve ao mesmo tempo Deus e o Diabo. Cada poeta mói no mesmo almofariz o bem e o mal, sem reparar que desde que o homem é homem o dilema é sempre o mesmo: todos ou alguns? E se foi possível outrora, por virtude da cegueira desses tempos, esquecer que o animal de quatro, duas e três patas do enigma (na meninice a gatinhar, bípede na maturidade e apoiado ao bordão na velhice) não era apenas um Sócrates de eleição mas também seu escravo, quer o confesse, quer não, o Parnaso de agora sabe-o perfeitamente. E a liberdade da sua existência não terá sentido e dignidade se em vez de conquistada for uma concessão recebida. Só quando insubmissos, e por isso dignos do seu nome, os poetas serão capazes de cumprir a sua missão divinatória por conta de todo o sofrimento humano. Somente da fortaleza da sua independência poderão oferecer à angústia universal a chave de um futuro melhor, construído sobre a denúncia dos crimes e das injustiças de que são testemunhas. O seu desejo de serem exemplares será a única arma do seu combate e a única esperança do seu triunfo. Corvos fugidos da arca onde navegava o medo e a passividade, terão de enfrentar a fúria do dilúvio e descobrir o rochedo onde não cheguem as vagas de nenhuma tirania. Antes de trair, os poetas têm obrigação de sucumbir. Só assim poderão espalhar a boa nova de uma verdade em perpétua renovação, pólen imponderável e alado que atravessa as fronteiras sem passaporte e fecunda do mesmo sonho todos os corações.
O que fez da Poesia um dos picos imaculados da cultura europeia, e ao mesmo tempo um factor decisivo da consciência universal, foi o seu heroísmo e a sua fidelidade a tudo o que é eterno. E para que continue entre os povos europeus essa missão purificadora e unificadora, é necessário que ele seja a expressão dos mais puros anseios de cada um e de todos. É preciso que abrace não apenas um indivíduo ou uma classe, mas o Homem. O Homem que as religiões salvaram para o céu nas catacumbas e no martírio, e que a Poesia deve salvar para a terra, à clara e alegre luz da beleza. Porque só a beleza nos arranca à solidão e nos une na mesma comunhão fraternal. Sorriso do mundo, só ela é capaz de nos oferecer aqui um ideal isento de armadilhas e contradições. Mais do que refocilar no lodo, é urgente que a Poesia arranque dele os que ali caíram desesperados, e lhes transmita a alegria de viver na descoberta sempre renovada e virginal dos seres e das coisas. Nem caridade, nem humanitarismo. Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face permanente do circunstancial, esperança libertadora ansiosamente desejada por todos os mortais.

In «Diário (6.º volume)», de Miguel Torga, edição de autor, Coimbra, 1978 (3.ª edição).

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