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terça-feira, 17 de junho de 2014

UM LIVRO SEMPRE POR LER, texto de José Tolentino Mendonça

Pormenor de pintura na Capela Sistina – Imagem encontrada em thesoftmanias.blogspot.pt

Tem-se tornado justamente famosa a anotação que pertence ao poeta William Blake: as Escrituras judaico-cristãs são um grande código da arte e do Homem. O que é um modo de dizer que a atividade cultural do Ocidente foi ininterruptamente fecundada pelo texto e pela simbólica bíblicas. De facto, sem a chave bíblica, o recheio pictórico da Capela Sistina, diariamente frequentado por milhares de pessoas, seria mais intrigante e impenetrável que as misteriosas estátuas da ilha de Páscoa. Mas também os grandes museus nacionais, pelo menos os da Europa, tornar-se-iam num arsenal de objetos sem razão e nexo.
A Bíblia representa uma espécie de «atlas iconográfico», um «estaleiro de símbolos». É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens. Desconhecer a Bíblia não é apenas uma carência do ponto de vista religioso: é também uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. Por isso, o escritor italiano Sergio Quinzio, recentemente, defendia: «A Bíblia deveria ser estudada na escola, e por todos, como se estuda a Ilíada...» Compreender a Bíblia é compreender-se, já que a Bíblia participa de modo determinante no circuito das relações que ligam experiência religiosa e consciência civil na Europa Moderna, a ponto de poder iluminar a própria identidade europeia.
A Bíblia aparece-nos disseminada pelo pensamento, imaginação e quotidiano. Ela continua a ser um texto, claro. Mas também, e de um modo irrecusável, a Bíblia constitui hoje um metatexto, uma espécie de chave indispensável à decifração do real. Da filosofia às ciências políticas, da psicanálise à literatura, da arquitetura explícita das cidades ao desenho implícito dos afetos, da arte dita sacra às formas de expressão que enchem, por toda a parte, galerias, museus, escaparates: a Bíblia é um parceiro, voluntário ou involuntário, nessa comunicação global. O mundo constrói-se na intertextualidade. Como outrora se falava do palimpsesto, temos hoje o zapping, o link, o corta e cola. O texto bíblico participa na construção do mundo, ao mesmo tempo que viabiliza a sua legibilidade.

In «O Hipopótamo de Deus – Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos», de José Tolentino Mendonça, Colecção Poéticas do Viver Crente (Série JTM), Paulinas Editora, Prior Velho, Outubro de 2013 (3.ª edição).

NOTA: O texto segue o AO90.

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