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terça-feira, 7 de abril de 2015

ELOGIO DA SARDINHA, crónica de Mário Cláudio

«O Enterro da Sardinha», composição de Goya – Imagem encontrada em http://virusdaarte.net/
Há um bom par de décadas, ao falar a um jornal, um dos nossos mais intelectuais poetas verberava o gosto que os leitores portugueses manifestavam por aquilo a que, recorrendo a um símbolo, chamava a «sardinha assada». Sendo tão fácil esquecer em geral o que os vates vão dizendo, a observação do referido permaneceria curiosamente na minha memória. Pretendia ele significar com a mordacidade do seu reparo aquilo que não corresponde a mais do que a pura expressão da lei do menor esforço, e que por isso não constitui fenómeno exclusivamente nosso, a atenção pelo simples, às vezes pelo medíocre, e na maioria dos casos pelo recreativo. Ao fazê-lo, deixava porém ficar pairando a impressão, afinal desfavorável a quem aspire a pensar civilizadamente, de que a frequência de Fernando Pessoa por exemplo se torna incompatível com a de Florbela Espanca, ou de que a recepção de Hans Werner Henze por hipótese se revela inassociável à de Astor Piazzola.
Voltando à sardinha, sempre me incomodou o regabofe pós-revolucionário que leva à mesa dos restaurantes massas oprimidas de devoradores de marisco, mais preocupados em ocupar o tempo do que o espaço, e a consequente vergonha que experimentam em tais fases os degustadores fiéis do peixinho que se vende ao quarteirão, e que cheira iniludivelmente a pobreza. Os novos-ricos da cultura, guindados à epidérmica cidadania que postula a avó que se deseja esconder, de lenço na cabeça, e o avô que é necessário rasurar, de ancas de cavador, desenha um dos traços, esse sim, mais salientes da nossa mentalidade de recém-chegados ao suburbanismo. Detectá-lo com nitidez, e até mesmo no discurso dos poetas muito intelectuais, equivale a técnica que aproveitará a quem se dispõe a reflectir sobre esta ordem de coisas.
A entrada do solstício, originante de culto mais afoito dos pequenos prazeres, traz ao nosso convívio a sardinha assada, clássica iguaria das eternas festividades populares, ou das efémeras comemorações futebolísticas. É útil que os que amiúde se envergonham de a mastigar conscienciosamente, ou que a reputam de lusa pelintrice, a observem agora com olhos de ver. Eu refiro-me, é claro, à espécie atlântica, e não a essa futrica modalidade, sensaborona e sem escamas, representada pela que aparece na bacia do Mediterrâneo. A velha sardinha conta de resto a seu favor, e hoje em dia, com o nihil obstat da comunidade médica, proverbialmente lábil em matéria de aconselhamento, mas cujos ditames importa seguir à risca.
Não gosto de sardinha congelada, equiparável à pop-fiction reles, nem de poetas demasiado intelectuais, idênticos ao autor da desastrosa generalização. Mas não me parece mal exigir o produto de qualidade, seja ele caro ou barato, ilustre ou plebeu, referendado pelo escol das academias, ou por um público saudavelmente vasto. Aos que farejarem tal vastidão com alarme, ou com a reticência bem-pensante dos vagos comedores de antenas de lagosta, só posso fazer votos de um Verão sem santos, sem futebol, e sem sardinha, o que me parece tristonha maneira de andar a gastar a existência por este canto da Europa. Fique claro no entanto que admito a legitimidade de outras rejubilantes opções, a maledicência atávica, a tribal competição, ou a vergonha de sermos aquilo que somos. Não as julgo todavia comparáveis, isto em termos de artigo que consubstancie a alegria colectiva, àquilo que a sardinha assada prefigura como metáfora.
Em 1818 pintou Goya O Enterro da Sardinha, uma sinistra e fantasmagórica cerimónia, comandada por duas megeras mascaradas, patrocinadas por um demónio que possui algo de inquisidor. De certa maneira anunciando a morte da grande festa, a alegoria serve a época em que a sardinha da nossa costa acaba sob a enxurrada da fast-food. Valer-nos-á então a paráfrase dos célebres versos de William Carlos Williams, afeiçoados assim, «Temos no nosso prato a espinha da sardinha. / Eis o que dá ao homem segurança!»

In «O eixo da bússola»» (crónicas), de Mário Cláudio, Verbo (chancela Babel), Lisboa, 2010.

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