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sexta-feira, 10 de abril de 2015

“Mas eram mesmo de Infantaria 16?”, excerto de romance de Fernando Madaíl

O rei D Carlos I no regimento de Infantaria 16, em 15 de Maio de 1907

Um grupo encostado a uma porta com uma inscrição a navalha, ali deixada por um vagabundo – e que nenhum deles sabia significar que daquela casa, com muitas lamechices, levava-se sempre moeda –, barafustava como se estivesse a teimar sobre algum nome da História dos Patriarcas de Antioquia – “ou por causa da teoria dos hemisférios de Magdeburgo?”. “Falhou! Não cercaram o Paço, bem defendido pelo Regimento de Infantaria 1, estrategicamente colocado junto das cancelas da linha férrea de Alcântara, mais duas companhias de Lanceiros e três ou quatro pelotões de Infantaria 16 que os oficiais honrados levaram para o Palácio Real, deixando à infantaria da Guarda Municipal a protecção da Calçada das Necessidades, tudo superiormente comandado pelo coronel Brito de Abreu”, sorria o bigode arrepiado de Archer Sereno, professor de Álgebra no Liceu Camões e assinante dos jornais católicos Portugal, A Palavra, Folha. “Mas eram mesmo de Infantaria 16?”, duvidava Encarnação Marinho, anarquista e frequentador do Café Bom, na Rua da Betesga, onde passava serões sem fim a discutir as páginas lidas de Alfred Naquet, Max Stirner, Gustave de Molinari, Karl Liebknecht. “Eram, eram. Então eu não sei? Eram de Infantaria 16, que bem lhes vi o distintivo nos bonés”, arengava Valentina Perdigão, mais filhos que os signos do Zodíaco, ainda com um ao colo e já outro na barriga.
“Os republicanos nem sequer tomaram os quartéis da Guarda Municipal do Carmo, da Estrela, dos Paulistas, de Alcântara”, lamentava o estivador Roberto Florival, que tinha ido tomar, ao princípio da noite, um banho de limpeza de segunda classe, mas com direito a toalha, aos Banhos de São Paulo, onde vira à entrada uns senhores de chapéus tão altos que davam a sensação de não terem fim e muito bem encadernados, não percebendo que eram os líderes políticos da revolta. “Depois, também não conseguiram ocupar o Rossio – e o comando da Divisão Militar de Lisboa, no Largo de São Domingos, que é o Quartel-General dos realistas. Estão ali Caçadores 5, mais as suas metralhadoras, que não hesitam em disparar contra farda inimiga, camisa azul de operário ou veston elegante de rico; e o melhor regimento do país, que é a Infantaria 5”, bazofava Flávio Lico, que tinha a mania de dizer que só pagava as dívidas em libras esterlinas e até se vangloriava de ter ido à grande corrida de Darraqcs e Locomobiles e Peugeots no Autódromo D. Amélia.
“De resto, já nem há oficiais na Rotunda! Fugiram todos em automóveis. Ainda houve uns populares que queriam que os mandassem fuzilar!”, tagarelava, como se estivesse num exame oral, Necas Romão, o soberbo estudante de Coimbra, tentando que ninguém suspeitasse de que tinha sido desprezado pelas tricanas Olívia, Palmira e Quitéria. A seu lado, nada proferia Coriolano Fragoso, outro galante aluno da Universidade, com a mania de trautear cantigas conimbricenses, com versos de Veiga Simões ou de Vicente Arnoso ou de Octaviano de Sá ou de Adelino Veiga. “Coimbra ficava no Norte ou no Sul?”, matutava Amélia.
“Hein?! Tenha respeito! Há lá gente com medalhas do Ultramar e divisas de atirador especial no braço direito. Não são propriamente ferradores dos cavalos que puxam os canhões”, insurgiu-se a voz, viril como uma coronhada, de Pinho Barros, capitão reformado, que passara o tempo militar entretido a jogar gamão ou whist e que – ninguém o suspeitava na rua –, a dar crédito ao que juravam os seus inimigos políticos, era incapaz de distinguir uma carabina Francotte de uma metralhadora Manenlicher.

In «A Costureira Sem Cabeça» (romance), de Fernando Madaíl, colecção «Portugal Sem Fim» (dirigida por José Manuel Barata-Feyo, em parceria com a AMI), Oficina do Livro (grupo LeYa), Fevereiro de 2011 (1.ª edição).

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