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terça-feira, 7 de abril de 2015

O MINOTAURO E A ÁRVORE DA VIDA, crónica de Mário Cláudio

Corino de Andrade – foto encontrada em http://alterego12c.blogspot.pt/
Era eu menino quase de bibe, quando o senhor da casa do lado se debruçou, no muro do quintal, franziu as sobrancelhas que lhe escureciam o olhar de descendente de brâmane, e rispidamente me interrogou, «Ouve lá, já te contaram a história do Minotauro?» A lenda que me propunha o cavalheiro austeríssimo continha-se ali, naquele grande livro ilustrado que me entregava, e que por longo tempo haveria de me esclarecer, nas aventuras do corpo e da alma. Tinha semelhante desvendador de segredos por essa altura um rapaz e uma rapariga pouco mais infantes do que eu, e habituara-me a observá-lo de longe, a espreitar para um microscópio, entre as lombadas, num gabinete revestido a fotografias de cientistas e a desenhos de Abel Salazar. Figurava ele, nos documentos oficiais, como Mário Corino de Andrade, seria para mim o Senhor Doutor, o Corino de Andrade para a maioria, o Corino para quem dele relatava lances que suscitavam a admiração extrema, engastada em não desprezível dose de temor reverencial. Permaneceria o nosso Amigo, no álbum de quem vos dirige agora, como incitador da visita a labirintos vários, no centro dos quais se implanta um tenebroso monstro, meio touro e meio homem, apenas derrotável pela coragem de um Teseu munido do refulgente fio de Ariadne. Animando de facto as crianças que trouxera ao Mundo, e os companheiros delas, a percorrer, sem qualquer réstia de apreensão, o magnífico dédalo de buxo da Quinta da Prelada, uma lição maior nos transmitia, a de que só vale a pena carregar o testemunho da existência, se ousarmos passá-lo a quem com a sua chama pretender iluminar o caminho que vai trilhando. E na glosa do exemplo de tais processos, oferecia-nos ainda inexcedíveis viagens diante de dispositivos projectados, não hesitando em contribuir para o realismo da experiência com o ruído do motor de um imaginário DC4, atrás de nós por ele mesmo produzido.
De uma ocasião em que o medo de enfrentar o Minotauro me levara a procurá-lo, começaria por me intimidar a que retirasse os óculos escuros, porque deve a verdade ser olhada às claras e sem disfarce. Desafiar-me-ia depois a que me pusesse a escrever, tarefa a que eu me dedicava, ignorando que correspondia a uma obrigação a cumprir, brindar-me-ia com muito mais perguntas do que respostas, e utilizando o intrigante pudor do afecto que o torna realmente feroz, sem cerimónias, mandar-me-ia verificar se estava a chover lá fora. Ganhava eu assim o meu segundo pai, aquisição de não escassa monta para quem como se vê acredita em deuses, em semideuses e em heróis, mas sobretudo na sua necessidade, a fim de se adquirir o direito de sermos donos daquilo que somos. E quando me falam hoje do estudo da doença dos pezinhos, sinto-me alumiado por dentro e contra toda a presença maléfica, destronado que se revela o espesso terror, ao perceber que é do meu guia que falam, e que defronte do Minotauro me ensinou ele o atrevimento de falar.
Na idade a que cheguei, não conheço lareira melhor que a do seu convívio, mais reconciliante cartilha que a da sua conversa, universidade preferível à da sua cavaqueira, sobre os Jogos Olímpicos de Berlim e as manias do Egas Moniz, sobre o sentido de uma deixa de Calderón de la Barca e a explicação de um verso de Ângelo de Lima, sobre a luz em que se esvaem os poentes de Vila Nova de Milfontes e a receita da suprema confecção do bacalhau à Batalha Reis. E descubro, nesta espécie de príncipe que se ri dos principados, neste tipo de mestre que jamais impõe o magistério, o protagonista ideal das reuniões elogiadas pelo renascente Baltazar Castiglione, as quais nem constituem conferências anódinas, porque se resumem a um diálogo em que cada um intervém, e participa do tema, e o interrompe, e o orienta a seu bel-prazer, nem se cifram em puros diálogos, desde que se considere que, mostrando-se oportuno que o que aí se diz seja entendido por todos, nada poderá surgir como estritamente confidencial.
Algumas vezes, passando rente ao jardim do nosso pedagogo de vencedores do Minotauro, eis que me fascina o carvalho do Norte esplêndido que nele se radicou. Mas atentando bem, logo me aproprio da evidente e natural razão de quejando fenómeno. Pois não seria aí a final de contas que haveria de merecer o privilégio de ter acrescido, e lançado em redor a sua ramagem, aquela árvore imensíssima, camarada das manhãs, das tardes e das noites de Corino de Andrade, ou desse que para mim e para muitos sempre foi, sempre será, outra forma e outro nome da Árvore da Vida?

In «O eixo da bússola»» (crónicas), de Mário Cláudio, Verbo (chancela Babel), Lisboa, 2010.

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