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quinta-feira, 30 de julho de 2015

[Os poetas, a poesia e os seus leitores], registo de João José Cochofel

Foto encontrada em http://www.infopedia.pt
Lisboa, Março de 1952

A abundância de poetas e de poesia, e – diga-se desde já – de um modo geral boa poesia, leva-nos a reflectir: onde se ocultará afinal a crise poética que todos nós sentimos existir? De que provirá esta sensação de desencanto, de cansaço, de desvitalização que, ano a ano, mês a mês, alarmadamente verificamos insinuar-se nos nossos juízos, minar as nossas preferências, e acabar por instalar-se na nossa apreciação do fenómeno poético português? Uma coisa é certa: existe de facto um fosso aberto entre o poeta e o leitor, entre a poesia e o público, fosso que os anos vão alargando mais e mais. Os livros saem, passam e esquecem, sem que ninguém se dê conta, nem a massa de leitores anónimos que devia constituir o fundo permanente de consumidores poéticos nem já quase sequer os círculos restritos dedicados às coisas da arte. E o poeta, ao publicar o seu livro, sente que o atira para o fundo de uma gaveta.
Ora nestas circunstâncias toda a vida poética – ou literária, ou genericamente artística – se torna fictícia. Sem jornais e sem revistas literárias que agitem e esclareçam as questões estéticas, sem leitores, como há-de a poesia sobreviver como fenómeno vital da vida cultural e mesmo social do país? Como hão-de o autor e o leitor estabelecer entre si o necessário diálogo, se regra geral falam línguas diferentes? E estamos chegados ao âmago da questão: poetas e público não acertam o passo, afastam-se e perdem-se por caminhos divergentes, na ausência de uma teia exterior e interior de acontecimentos e relações que os aproximem e os sincronizem. O público não se encontra preparado para a recepção poética; e o poeta, isolado, sem estímulos, sabendo que a sua arte não corresponde a uma necessidade autêntica, mas funciona muitas vezes apenas como um sucedâneo do panfleto ou da própria acção, não encontra, mau grado as suas porventura grandes qualidade de artista, a matéria e o tom adequados ao que de novo e estimulante teria de a exprimir. Há todavia aqui um aspecto em que gostaria de insistir. Apertado neste círculo vicioso, o poeta retrai-se, no pudor dos próprios pensamentos e das próprias emoções, aplicando-se a burilar a forma que a pouco e pouco deixará de ser para ele um elemento funcional, e pranteia uma nostalgia da comunhão humana que lhe falha através do contacto procurado com a sua arte e que, por mais verídica e pungente que realmente seja, nos seus versos aparece mais como vontade, como deliberação, ou quando muito como ideal frustrado. Pois bem: a crise da poesia portuguesa contemporânea, ou melhor, da parte mais viva e que na verdade interessa desta poesia, porque da outra não tenho que me ocupar, parece-me residir precisamente nisto: na sua falta de convicção, de confiança em si própria e no homem que serve. De nada lhe valerá fingir ignorar essa debilidade e procurar uma solução no decalque ou na inspiração de poesias estrangeiras mais afortunadas, a francesa sobretudo, que teve na Resistência um poderoso elixir de rejuvenescimento; quer queiramos quer não, é aqui em Portugal, e pelos seus próprios meios, que o problema da poesia portuguesa tem que ser resolvido. De nada lhe valerá tampouco tergiversar, fingir-se desinteressada e refugiar-se na, tantas vezes admirável, procura formal ou rebusca interior. O círculo vicioso mantém-se e aperta-se até, e a nostalgia de que atrás falava surge nela como o traço psicológico mais vincado: a nostalgia do homem verdadeiramente humano pressentido, mas carecendo de força ou de possibilidades para ajudar a alcançá-lo. O poeta, apesar de tudo, não renuncia nem se dá por vencido, e mesmo desajudado, mesmo sozinho, teima heroicamente em erguer um canto paradoxalmente tímido. (…)

In «Opiniões com Data», João José Cochofel, Obras Completas [de] João José Cochofel, Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 1990.

terça-feira, 28 de julho de 2015

«Faz por ti», poema de João Negreiros

Faz o Sol por ti antes que arda.
Faz a chuva por ti antes que chores.
Faz a Lua por ti antes do dia.
Faz um sonho por ti antes do pequeno-almoço.
Faz um filho por ti com alguém.
Faz um negócio por ti por dinheiro.
Faz um vestido, não por ti, mas pelo teu corpo.
Faz um caminho por ti antes que te doam as pernas pela falta de uso.
Faz um festival da canção, afasta a mesa da sala, usa uma escova como microfone,
faz as canções todas do mundo por ti e as brilhantinas todas do mundo por ti.
Faz uma corrida por alguém e corta por ti a meta.
Corta por ti uma laranja e sorve o sumo por uma pessoa só se tiveres muita sede.
Faz por ti um facho… e alumia quem te segue.
Faz por ti com rigor mesmo rodeado de indolentes.
Faz por ti com calma mesmo assolado por patrões.
Faz por ti a coragem e serás assustador sempre que for preciso.
Faz por ti a sabedoria e saberás sempre que estiveres calado.
Não faças pouco de ti. 
Não faças pouco dos outros.
Faz por ti como o dia quando acordas.
Do aniversariante:
Obrigado, João Negreiros! É uma honra, amigo poeta...

sábado, 25 de julho de 2015

[As palavras da poesia], registo de João José Cochofel

Foto encontrada em http://cvc.instituto-camoes.pt/
Lisboa, Dezembro de 1948

É sempre um prazer ler os jovens poetas. Ao lado da inexperiência, quantas vezes mesmo da ingenuidade, há quase sempre a contar com uma frescura e uma espontaneidade tocantes, nas reacções às solicitações da vida e do meio. E torna-se apaixonante verificar como a aventura poética se processa nestes seus obscuros comparsas, em quem geralmente se deixa surpreender com maior transparência.
Mas esta sedução tem o seu reverso. A poesia não é apenas exposição de sentimentos e ideias: é fundamentalmente a sua formulação literária. E, para tanto, tem o poeta que lutar com a floresta das palavras, tem que vencer a resistência da sua inércia, tem que as amoldar, que adaptá-las, por assim dizer, ao seu caso, já que a aventura poética, tal como a experiência psicológica, não se repete e é única para cada indivíduo, devendo, para que se lhe reconheça autenticidade, corresponder-lhe uma expressão própria. É nesta luta com a matéria, neste esforço operário, que o poeta realmente se forja, libertando-se das suas dores, comovedoras sem dúvida pela sinceridade, mas em si mesmas insignificativas, e afeiçoando a voz, para que o canto lhe saia nítido, pessoal e bem timbrado.

In «Opiniões com Data», João José Cochofel, Obras Completas [de] João José Cochofel, Editorial Caminho, Lisboa, Outubro de 1990.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

[Homenagem ao leitor apressado], excerto de «O Despertar dos Mágicos»

Imagem encontrada em http://www.impacta.com.br/

«Como poderia um homem inteligente, hoje em dia, não se sentir apressado? «Levante-se, senhor, pois tem grandes coisas a fazer!» Mas é necessário levantarmo-nos cada dia um pouco mais cedo. Acelerai os vossos aparelhos de ver, ouvir, pensar, recordar, imaginar. O nosso melhor leitor, para nós o mais precioso, devorar-nos-á em duas ou três horas. Conheço alguns homens que lêem com o máximo proveito cem páginas de matemática, filosofia, história ou arqueologia em vinte minutos. Os actores aprendem a «colocar» a voz. Quem nos ensinará a «colocar» a atenção? Há uma altura a partir da qual tudo muda de velocidade. Eu não sou, neste trabalho, um desses escritores que desejam conservar o leitor a seu lado o mais tempo possível, entretendo-o. Nada para o sono, tudo para despertar. Despachem-se, escolham e partam! Lá fora há uma ocupação. Se for preciso, saltem capítulos, comecem por onde lhes apetecer, leiam em diagonal: isto é um instrumento com múltiplas aplicações, como a faca dos campistas. Por exemplo, se receiam chegar tarde demais ao âmago do assunto que lhes interessa, saltem estas primeiras páginas. Saibam apenas que elas dão a conhecer a forma como o século XIX fechou as portas à realidade fantástica do homem, do mundo, do Universo; a maneira como o século XX as reabre, e como as nossas leis morais, as nossas filosofias e a nossa sociologia, que deviam ser contemporâneas do futuro, não o são, continuando acorrentadas a esse caduco século XIX. Não foi lançada a ponte entre a época das espingardas e a dos foguetões, mas pensa-se nisso. É para que se pense ainda mais que nós escrevemos. Apressados como estamos, não é sobre o passado que choramos, é sobre o presente, e com impaciência. Pronto. Já sabem o bastante para poderem folhear rapidamente este início, se for necessário, e ler mais adiante.

In «O Despertar dos Mágicos – Introdução ao Realismo Fantástico», de Louis Pauwels e Jacques Bergier, tradução de Gina de Freitas, Livraria Bertrand, Lisboa, Março de 1980 (11.ª edição).

[A deleitação burguesa], excerto de «O Despertar dos Mágicos»

Imagem encontrada em http://technowayer.blogspot.pt

«A marquesa tomou o seu chá às cinco horas»: Valéry dizia mais ou menos que não se pode escrever semelhantes coisas quando já se entrou no mundo das ideias, mil vezes mais importante, romanesco, mil vezes mais real do que o mundo do amor e dos sentidos. «António amava Maria que amava Paulo; eles foram muito infelizes e tiveram uma série de questiúnculas». Uma literatura inteira! Palpitações de amibas e de infusórios, quando o Pensamento arrasta tragédias e dramas gigantescos, transmuda seres, altera civilizações, mobiliza multidões imensas. Sonolentos prazeres, deleitação burguesa! Nós, os adeptos da consciência alerta, trabalhadores da Terra, sabemos onde se encontram a insignificância, a decadência, o divertimento corrupto…
O final do século XIX marca o apogeu do teatro e do romance burguês, e a geração literária de 1885 reconhecerá durante algum tempo como mestres Anatole France e Paul Bourget. Ora, nessa mesma época há um drama, no domínio do conhecimento puro, muito maior e palpitante do que entre os heróis do Divorce ou do Lys Rouge. Produz-se uma súbita embriaguez no diálogo entre materialismo e espiritualismo, ciência e religião. Do lado dos sábios, herdeiros do positivismo de Taine e Renan, formidáveis descobertas farão desmoronar as muralhas da incredulidade. Apenas se acreditava nas realidades devidamente estabelecidas: bruscamente, é o irreal que se torna possível. Observai os factos como se se tratasse de uma intriga romanesca, com mudança repentina de personagens, intervenção dos traidores, paixões contrariadas, debate entre ilusões.
O princípio da conservação da energia era algo de sólido, de fixo, de marmóreo. E eis que o rádio produz energia sem a ir buscar a qualquer fonte. Havia certezas a respeito da identidade da luz e da electricidade: só se podiam propagar em linha recta e sem atravessar obstáculos. E eis que as ondas, os raios X atravessam os sólidos. Nos tubos de descarga, a matéria parece eclipsar-se, transformar-se em corpúsculos. A transmutação dos elementos opera-se na natureza: o rádio torna-se hélio e chumbo. Eis que a Época das Certezas se desmorona. O mundo já não brinca ao jogo da razão! Tudo se torna então possível? De chofre, aqueles que sabem, ou julgam saber, cessam de fazer a divisão entre física e metafísica, coisa verificada e coisa sonhada. Os pilares do Templo fazem-se em nevoeiro, os clérigos de Descartes deliram. Se o princípio de conservação da energia é falso, que impediria o médium de fabricar um ectoplasma a partir de zero? Se as ondas magnéticas atravessam a terra, por que motivo não poderá um pensamento viajar? Se todos os corpos emitem forças invisíveis, por que não um corpo astral? Se há uma quarta dimensão, será ela o domínio dos espíritos?
Madame Curie, Crookes, Lodge fazem mexer as mesas. Edison tenta construir um aparelho que comunique com os mortos. Marconi, em 1901, julga ter captado mensagens dos Marcianos. Simon Newcomb acha absolutamente natural que um médium materialize crustáceos frescos do Pacífico. Uma tempestade de fantástico irreal deita por terra os investigadores de realidades.
Mas os puros, os irredutíveis, tentam repelir essa corrente. A velha guarda do positivismo insurge-se. E, em nome da Verdade, em nome da Realidade, recusa tudo: os raios X e os ectoplasmas, os átomos e o espírito dos mortos, o quarto estado da matéria e os Marcianos.
Assim, entre o fantástico e a realidade vai desenrolar-se um combate muitas vezes absurdo, cego, desordenado, que em breve se fará sentir em todas as formas do pensamento, em todos os domínios: literário, social, filosófico, moral, estético. Mas é na ciência física que a ordem se restabelecerá, não por regressão ou amputações, mas por excesso. É na física que surge uma nova concepção. Devemo-la ao esforço de titãs como Longevin, Perrin, Einstein. Uma nova ciência aparece, menos dogmática que a antiga. Abrem-se portas sobre uma realidade diferente. Como em todo o grande romance, não há no fundo nem bons nem maus e todos os heróis têm razão se a atenção do romancista se tiver colocado numa dimensão complementar onde os destinos se tornam a encontrar, confundindo-se, elevados em conjunto a um grau superior.

In «O Despertar dos Mágicos – Introdução ao Realismo Fantástico», de Louis Pauwels e Jacques Bergier, tradução de Gina de Freitas, Livraria Bertrand, Lisboa, Março de 1980 (11.ª edição).