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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O DIÁRIO, poema de José Régio

Fotografia encontrada em http://www.mensagenscomamor.com

Tinha um diário aonde ia escrevendo,
Dia a dia, a agonia dos meus dias:
Era um romance tremendo,
Dilacerado de piedade e de ironias.

Todas as noites escrevia nele
Quando voltava lá de baixo, lá do mundo,
Enquanto, na parede, um Cristo imbele
Caía moribundo.

Um brandão quase verde dava luz…
Parecia que alguém ia morrer.
E eu, realmente, em frente da agonia de Jesus,
Agonizava horas e horas, a escrever.

Toda a gente sente, ou pensa, e não confessa,
Tudo que só na escuridão a gente sonha,
O escrevia, com suor frio na cabeça,
E lágrimas no rosto incendiado de vergonha!

Assim eu descobrira o meio de exercer,
Continuando entre vós, sem me desmascarar,
Todas as faculdades do meu ser:
Infâmias e virtudes que não ouso revelar…

E, quando, enfim, me abandonava, exangue,
Sobre o meu leito, a olhar o Cristo moribundo,
Gozava sonhos de oiro com relâmpagos de sangue
E em que descia em mim até ao fundo.

Era assim que sabia possuir
Toda a minha Grandeza e toda a minha Corrupção.
Mentia-vos depois? Ah! o gosto de mentir
Com a verdade na mão!

Ora um dia (era um dia extraordinário),
Procurando escrever como nos outros dias,
Nada pude escrever, e pus-me a ler o meu diário:
Cheguei ao fim, tinha as mãos lívidas e frias!

Que o meu olhar, agora cristalino,
Vira que, nessas páginas, tudo era mentiroso:
Porque tudo o que em mim é só abjecto ou pequenino,
Lá surgia dramático, e por isso, grandioso.

Sim, todos esses crimes e heroísmos só sonhados,
Todo esse mundo íntimo – era meu!
Mas o vulto que unia esses bocados,
Esse, ó poder do Artista! era maior do que eu.

E eu vi como não era a posse da Verdade,
Nem a libertação de quem se expande,
O que pedia ao meu diário… mas vaidade
De até no aviltamento me ver grande!

Ergui, então, o meu diário à luz verde-amarela…
Por um momento só, no quarto houve mais luz…
E todo o resto dessa noite horrenda e bela
Chorei, torcendo as mãos em frente de Jesus.

In «Poemas de Deus e do Diabo» (com oito desenhos do Autor e «Introdução a uma Obra»), de José Régio (Obras Completas), Brasília Editora, Porto, Julho de 1972 (8.ª edição).

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