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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Poema «XXIII» de AREIA (1938), de José Gomes Ferreira

Imagem encontrada em http://invasoras.pt

(Aquele vagabundo que encontrei na estrada.)

Paisagem de muros e de cães
a ladrarem para o céu
– propriedade azul
de todos os desgraçados.

Árvores escondidas
que o vento desenha em perfumes
no silêncio do sol.

Sebes de silvas e piteiras
ainda com o ódio primitivo
de quando o mundo
era um planeta de florestas e de pássaros,
e o homem um intruso,
um ser ilógico
sem raízes nem asas.

Hoje esse homem sou eu,
sem terra para pisar,
sem sombras para dormir,
sem frutos para comer,
sem flores para cheirar,
sem fontes para beber
– perseguido por todos os muros do mundo
numa paisagem de lagartixas.

Hoje esse homem sou eu,
vendado de pedras e de tojo,
sombra esquecida de alguém
a olhar para o céu
– deserto voado de todos os vagabundos.

Hoje esse homem sou eu.

O céu, ao menos, não tem muros.
E as aves não riscam fronteiras
nem põem vidros partidos nas nuvens.

In «Poeta militante – Viagem do Século Vinte em mim» (1.º volume), obra poética completa de José Gomes Ferreira, colecção «Círculo de Poesia», Moraes Editores, Lisboa, Outubro de 1977 (1.ª edição).

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