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sábado, 24 de setembro de 2016

«Fumo», excerto do romance «O Delfim», de José Cardoso Pires

Imagem encontrada em http://portocanal.sapo.pt/

Fumo: E aqui cortam-me o caminho nuvens de um fumo quente, carregado de ternura e de recordação, que vêm de um pátio à entrada da aldeia. Faço um desvio, mergulho nelas, vou dar a um forno de pão, chamado pelo maravilhoso aroma da rama de pinho a arder. Labaredas calorosas, masseiras de tábua raspada, a ladina pá da forneira e a brancura do linho que cobre a branca farinha, tudo se afoga em névoa, em alvura – e eu também. Os olhos ardem-me, e nem assim deixo de estar preso ao conforto hospitaleiro, ao segredo e às seduções que há num forno de pão. Só daí por bastante tempo consigo despegar-me daquele tugúrio consolador, e então pasmo: também a aldeia se encontra coberta de bruma. Bruma ou fumo de pinho?
Depois do dia luminoso que esteve, uma turvação assim, repentina, não engana ninguém. São os ventos a mudar, são eles, os ares do oceano, que entram pela costa carregados de poeira de água, de névoa. Ar marítimo. Correcto, confere com o boletim meteorológico, que, uma vez sem exemplo, se decidiu a cumprir a palavra. De madrugada cá teremos o prometido noroeste, nada quezilento, nada alvoroçado, para impedir, como convém, a fuga das aves para o mar. Só falta que abrande durante a tarde de maneira a proporcionar uma deslumbrante entrada de patos na lagoa ao pôr-do-sol. Isso então é que seria correcto, correctíssimo. Por nada deste mundo queria estar na pele desses cavalheiros que repousam agora nos juncais, ferrados no sono. E nesta conversa já são quase dez horas, quem diria.
As luzes do café derramam-se na cinza clara que repassou a noite, a balbúrdia dos ciclistas aumenta. Gente que chega, um rádio que berra, a mulher que chama pelo filho, e eu cortando esta confusão, rumo à hospedaria. No momento em que vou abrir a porta, trava junto de mim o Morris-850 do Padre Novo.
«Venho agora da Vila. Acabo de encontrar o Engenheiro no posto de gasolina.»
Disse isto sem despegar as mãos do volante. Como se andasse a passar a palavra de pessoa em pessoa e tivesse pressa.

«O Delfim», romance de José Cardoso Pires, Moraes Editores, Lisboa, Outubro de 1978 (8.ª edição).

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