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quarta-feira, 8 de março de 2017

[– Não custa limpar os pés como deve ser, pois não?], excerto do livro «Jesus Cristo bebia cerveja», de Afonso Cruz

Imagem encontrada em https://www.esfmp.pt

Os dias sucedem-se iguais, uns atrás dos outros, e a rotina infiltra-se na carne como música nas orelhas. O Verão deixa entrar o Outono na sua casa; e este, o Inverno; e a diplomacia das estações sucede-se.
Rosa corre pela chuva e chega à casa de Santos & Santos. Com a roupa molhada, tira, com alguma dificuldade, as chaves de uma mala demasiado cheia e abre a porta da rua. Fecha o guarda-chuva, sacode-o e encosta-o à parede, e depois tira o lenço que traz na cabeça e sacode o cabelo como fazem os cães molhados. Passa os sapatos pelo tapete e dirige-se à cozinha, mas pára porque ouve um grito. Vira-se, avermelhada, pois aquela voz é terrível. Dona Clotilde é responsável por todas as empregadas da casa. Cita filósofos alemães enquanto aspira. Gosta de Kant, apesar de dizer: aquilo não era um filósofo, era um relógio. Uma pessoa pode saber que horas são só por pensar como ele. Rosa ouve-a com paciência, engole os seus gritos de desespero pelo corredor que, acabado de limpar, está novamente sujo, com lama. No meio dos gritos ouve citações de Heidegger e até já sabe uma ou outra frase de Ser e Tempo e outras higienes. Dona Clotilde enviuvou ainda relativamente nova, não tinha mais de quarenta anos, mas deixou-se entristecer eternamente sem outro consolo que não a limpeza do mundo. Tem propriedades em Lisboa e não precisa de trabalhar, mas vê a limpeza como uma missão: quer limpar o mundo. E não há nada melhor do que o chão, pois é aí que o mundo começa. No fundo, dona Clotilde sente-se um símbolo, alguém que limpa a parte mais baixa de todas, aquilo que está ainda mais baixa do que os nossos pés, limpa aquilo que pisamos.
A lama é uma ofensa tremenda à civilização, e o carácter de dona Clotilde jamais permitiria a barbárie espalhada pelos patamares de mármore e corrimãos e flores de plástico. São milhares de anos de sociedades sedentárias, para depois andarmos a pisar toda a nossa História com sapatos sujos. Rosa suspira e recua para a entrada para voltar a limpar os pés, mas isso ainda irrita mais dona Clotilde. Está a fazer pior ao chão, na perspectiva de poupar o resto do corredor. O raciocínio pode ser correcto, mas ver aquele espaço da entrada a encher-se de sujidade é algo que dona Clotilde é incapaz de tolerar. A sua cara ruboriza-se e chega a levantar a mão, um gesto de que prontamente se arrepende. Por isso disfarça e transforma o seu movimento numa palmadinha nas costas de Rosa.
– Muito bem – diz ela. – Não custa limpar os pés como deve ser, pois não?

In «Jesus Cristo bebia cerveja», de Afonso Cruz, Penguin Random House Grupo Editorial Unipessoal, Lda. (chancela da Alfaguara), Lisboa, Novembro de 2015 (1.ª edição).

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